Do gabinete do fórum para o hospital municipal Souza Aguiar no Rio de Janeiro. O caminho feito pelo juiz do Trabalho Roberto Fragale não foi por motivo de saúde. A razão, na verdade, foi por motivo de muito trabalho: por um dia, deixou as atribuições da magistratura para trabalhar como gari na limpeza hospitalar.
“Na rotina hospitalar, tornei-me invisível para médicos e enfermeiros, que sequer nos davam bom dia”.
Fragale foi um dos doze magistrados que participou do projeto “Vivendo o trabalho subalterno”, organizado pela Escola Judicial TRT da 1ª região.
Subalterno?
Magistrados da JT/RJ vivenciam por um dia o trabalho subalterno de garis, faxineiros, copeiros, cobradores de ônibus, operadores de caixa, entre outros. O projeto é realizado desde 2017 e está em sua terceira edição.
De acordo com o desembargador Marcelo Augusto Souto de Oliveira, diretor da Escola Judicial, a adoção da palavra “subalterno” para batizar o projeto se explica pelo fato de ser este um termo oriundo no campo da psicologia social, o qual designa pessoas que trabalham com pouca demanda intelectual e que, de modo geral, possuem pouca instrução e recebem baixíssima remuneração.
“São trabalhadores que foram ‘subalternizados’ pela sociedade, não que eles sejam assim, mas eles são tratados dessa forma pela sociedade e pelo sistema de produção.”
Para a vivência, é realizado um treinamento prévio nas empresas. A identidade dos magistrados não é revelada aos demais empregados até o final da experiência. O objetivo é oferecer aos juízes conteúdos que os preparem para as complexidades vivenciadas em seu cotidiano de trabalho e que os capacitem para o relacionamento com aqueles para os quais oferecem a prestação jurisdicional.
O projeto teve inspiração na pesquisa de Fernando Braga da Costa, que escreveu o livro “Homens invisíveis: relato de uma humilhação social”, no qual estudou a profissão dos garis dentro da universidade.
Gari, cobrador de ônibus, ajudante de caminhão…
A experiência de Roberto Fragale como gari hospitalar foi em 2017, na primeira edição. Desde então, o magistrado já atuou em outras diversas profissões. Foi gari de praia, ajudante de caminhão, auxiliar de limpeza na Fiocruz e, mais recentemente, cobrador de ônibus. Além de participante, ele é coordenador da iniciativa.
O juiz faz um balanço positivo de cada uma das experiências:
“Me proporcionou a chance de conhecer gente, encontrar pessoas batalhadoras que fazem da luta cotidiana uma tentativa de sobrevivência. Serviços de limpezas não são tão simples, não são fáceis. Em todas essas profissões o que eu pude aprender, sem dúvida, aprender é que nada se aprende em um dia.”
Fragale diz que um dos principais impactos da experiência na formação dos magistrados é a comunicação a partir de um lugar de fala diferente: “Talvez seja pouco para um mero dia de trabalho subalterno e braçal, mas já é um largo passo para que juízes possam lançar sobre sua prática profissional um olhar diferenciado, um olhar enriquecedor de sua constituição como mais um Outro na sociedade”.
“Filhinha de papai”
Outra magistrada que participou do projeto, foi a desembargadora Giselle Bondim. Ela também trabalhou como gari hospitalar no hospital Souza Aguiar. A magistrada contou que viver o dia de um profissional de limpeza a colocou em contato direto com a dificuldade que a atividade pode ter, “não só pelo risco constante de contaminação (há pisos com sangue e vômito que devem ser lavados, há recolhimento de lixo biológico, há risco de ferimentos por agulhas infectadas, etc.). Trabalhar em pé, por oito horas, é algo muito cansativo, fora da minha realidade e da maior parte das profissões burocráticas. Enfim, é um trabalho pesado, com riscos à saúde desses trabalhadores e sobretudo essencial”, disse.
“Aprendi que reconhecer genericamente a importância de todos os profissionais é insuficiente. Conhecer especificamente as peculiaridades de cada profissão faz com que se possa dar um valor mais concreto a esse trabalho. Lógico, que é humanamente impossível viver todas as profissões, mas cabe ao juiz do trabalho, ao examinar um processo, valorizar o ser humano que realizou aquela atividade e procurar compreender o melhor possível o que era aquele fazer.”
Quando questionada se passou por alguma situação difícil ou até engraçada, a magistrada contou que sua coordenadora perguntou se ela era “filhinha de papai” após ser repreendida por sua postura. “Na hora, neguei, desconversei e ao final do dia expliquei o projeto para todos e fui muito bem recebida por todos, que se sentiram valorizados pelo olhar da Justiça do Trabalho sobre eles”, contou.
A magistrada disse que tal pergunta a levou para uma reflexão sobre privilégios:
“É sobre essa distribuição desigual de “privilégios” que nossa sociedade deve se posicionar. Precisamos dar a todos igualdade de condições para que todos possam ter igualdade de oportunidades.”